publicado dia 22/09/2016

Os meninos coloridos e invisíveis dos faróis de São Paulo

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22/09/2016|

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Crédito: Tiago Queiroz

Crédito: Tiago Queiroz

Nos faróis da Avenida Tiradentes, próximos da Estação Armênia do metrô, região central da cidade de São Paulo, meninos se reúnem aos fins de semana para fazer malabares. Mas não são apenas malabaristas. Com tinta no rosto e fantasiados de palhaços, tornam-se o colorido na cidade cinza. No concreto, a pintura grita. É a busca pela visibilidade, a forma encontrada para dizer: “Olha, gente! Estou aqui!”. Um silencioso pedido de socorro, quase inconsciente.

Crédito: Tiago Queiroz

São cerca de 20 garotos da mesma comunidade (Vila Nova Galvão, região do Jaçanã, Zona Norte da cidade). Quase todos negros. Todos muito pobres e vítimas do trabalho infantil. Adolescentes de 13 a 17 anos se misturam a jovens de 20, que também começaram a trabalhar antes da maioridade. Logo pela manhã, organizam-se em subgrupos e tomam o ônibus Tietê, que leva meia hora até o destino. Alguns já vão fantasiados. Outros deixam para se arrumar por lá mesmo.

Crédito: Tiago Queiroz

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Quando o semáforo fica vermelho para os carros, eles sobem em bancos no meio da avenida. Cones voam. Tochas de fogo, acesas em querosene, fazem um desenho nas alturas. No canteiro central, ficam as mochilas. A rua vira um palco.

Crédito: Tiago Queiroz

Crédito: Tiago Queiroz

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Foto: Tiago Queiroz

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Lucas*, de 21 anos, foi quem trouxe a arte dos malabares para a comunidade. Ele aprendeu tudo com primos gaúchos, que eram do circo, mas abandonaram a lona para ganhar a vida nas ruas. Ele inspirou os garotos – muitas vezes aliciados pelo crime – a “ganhar dinheiro honesto para ajudar a família”.

Crédito: Tiago Queiroz

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A ausência de cores, a falta de amparo

Antônio*, de 20 anos, faz parte deste enredo. Trabalhador desde os 15, ele já foi ajudante de jardinagem e operador de motosserra, mas confessa no passado ter se “rendido ao tráfico, porque a grana era alta”. Quase mil reais diários. Com malabares, eles faturam de R$ 50 a R$ 100, dependendo da sorte. De roubo, participou duas vezes, mas não gostou e desistiu. Ironicamente, foi preso por um crime que nega ter cometido.

Crédito: Tiago Queiroz

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Era 2 de agosto. Alguns amigos pediram ajuda para trocar o pneu de um carro. Antônio – evangélico como a maioria do grupo – jura por Deus que não sabia se tratar de um veículo roubado. Ele quis se defender, apanhou da polícia e também bateu, de tanta raiva que sentiu pela injustiça. Fugiu, pulou no rio da favela, levou um tiro e se escondeu em um hospital. Foi preso mesmo assim. No dia seguinte, a vítima não o reconheceu e ele acabou liberado. Apesar disso, precisa se apresentar à polícia de três em três meses, durante quatro anos. Foi indiciado no artigo 180 do Código Penal, por “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime”. A escola, ele parou na sexta série.

Crédito: Tiago Queiroz

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Quando chegam aos 15 anos, muitos garotos e garotas que trabalham na rua já não estudam mais. Outros vão para a escola à noite, porque durante a semana também fazem malabares em outros cantos da cidade. Antônio quer voltar a estudar e aguarda uma vaga. Perdeu, porém, a data da matrícula.

“Arrumar emprego sem estudar é difícil, mas também prefiro a rua, porque me sinto livre. Não gosto de ficar obedecendo chefe. Aqui eu aprendo muita coisa”, diz. Aprende, inclusive, o que não está preparado para aprender. O trabalho infantil  deixou em Antônio fortes cicatrizes.

Crédito: Tiago Queiroz

Paulo Bonilha, médico pediatra e de saúde pública da Prefeitura Municipal de Campinas e da Unicamp, explica que crianças e adolescentes não estão desenvolvidos do ponto de vista da maturidade emocional e intelectual para trabalhar. Tampouco têm noção dos riscos que correm. “Eles se acidentam seis vezes mais do que um adulto, na mesma condição de trabalho. A rua é um local de risco, desde os acidentes automobilísticos até a exposição à violência”, afirma Bonilha, com a experiência de quem atuou também como coordenador da área de saúde da criança do Ministério da Saúde.

Crédito: Tiago Queiroz

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Enquanto trabalha, a criança deixa de fazer lição, descansar, praticar esportes, aprender a tocar algum instrumento e cumprir atividades complementares à escola. Ainda segundo Bonilha, a responsabilização precoce de ganhar dinheiro é um peso muito grande e causa estresse. Outra grave consequência é a reprodução do ciclo intergeracional da pobreza.

Leo Duarte, conselheiro tutelar, explica que o Conselho geralmente encaminha o serviço de assistência social às famílias dos meninos em situação de trabalho antes de qualquer punição. Em conversa com os envolvidos, os profissionais detectam quais são as necessidades daquele núcleo, encaixando-os em programas sociais, na tentativa de combater a fragilidade econômica e social que leva as crianças às ruas.

Crédito: Tiago Queiroz

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O palhaço que não ri

Palhacinhos, palhacinhos, quanta dicotomia em vocês. Estamos acostumados a enxergar os palhaços como figuras divertidas e generosas que simbolizam a alegria da infância. Mas cadê o brilho nos olhos dos artistas da Avenida Tiradentes? Wellington Nogueira, palhaço e fundador dos Doutores da Alegria, não consegue vê-lo. Ninguém o vê. O olhar dos palhacinhos em situação de trabalho infantil não brilha, está sempre voltado para baixo. Quando erguido, parece perdido. Qual é o seu sonho? Não sei. O que você mais gosta de fazer? Não sei. Tanto mistério escondido atrás de uma fantasia.

Crédito: Tiago Queiroz

Nogueira sabe bem a diferença entre a performance de um artista na rua e o “piloto automático” de uma criança trabalhadora. “Tem artistas que adoram a rua, porque a rua é um grande aprendizado mesmo, mas esses meninos, mesmo sendo muito bons, não estão fazendo arte. Eles estão captando recurso”, comenta. “Honestamente, acho que a criança deve brincar mais do que qualquer coisa. A arte e a cultura devem chegar pela brincadeira. É isso o que vai colocar essa criatura no mapa.”

Crédito: Tiago Queiroz

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*Os nomes são fictícios a fim de preservar a identidade dos entrevistados.

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