Reportagens

Trabalho infantil doméstico é naturalizado e se torna porta para outras violências

  • Ícone Whatsapp
  • Ícone Twitter
  • Ícone Facebook

Por Bianca Pyl

Dados mostram que maioria das crianças e adolescentes que trabalham com serviços domésticos são meninas negras. Além disso, a dupla jornada é comum, acumulando o serviço doméstico com o trabalho em outros setores.

Laura* saiu de sua casa em Feira de Santana para trabalhar na casa de um médico e de uma arquiteta, com três filhos. Ela tinha 13 anos e recebia R$ 150 de salário. No mesmo ano em que ela iniciou o trabalho como empregada doméstica, ela abandonou a escola porque não conseguia fazer as atividades de casa e estudar. Antes Laura tentou estudar à noite, mas  não se adaptou porque ficava muito cansada por conta das tarefas domésticas e do cuidado com as crianças. Ela só ia para casa aos finais de semana, mas diminuiu a frequência aos poucos, a pedido de seus patrões e também porque, em casa, tinha que fazer faxina pesada e ajudar a mãe a fazer salgados para vender. Hoje, com 16 anos, Laura está em um abrigo porque foi colocada para fora da casa em que trabalhava acusada de “seduzir o patrão de 53 anos”. A adolescente relata que era estuprada com frequência pelo patrão, que ameaçava não pagar seu salário, caso ela não cedesse às suas vontades.

O caso de Laura ilustra como o trabalho infantil doméstico – classificado como uma das Piores Formas de Trabalho Infantil desde 2008 – deixa crianças e adolescentes vulneráveis a diferentes tipos de violências, entre elas a sexual. A realização das tarefas ligadas aos cuidados do lar consiste em uma das formas de exploração do trabalho de crianças e adolescentes mais naturalizada.

O trabalho doméstico é tão enraizado nas práticas sociais brasileiras que chegou a ser contemplado no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1.990), instituído em 1990, de acordo com Sara Oliveira, gerente de projetos da organização Plan International Brasil em Salvador. O ECA determinava a regularização da guarda do adolescente empregado na prestação de serviços domésticos. “Esse artigo (248) é considerado tacitamente revogado desde 2008, quando o Brasil aprovou a lista de piores formas de trabalho infantil”, explica.

Crédito: iStock

O trabalho infantil doméstico ainda mantém uma relação com a escravidão e também com questões patriarcais na avaliação de Sara. “Muitos patrões e seus filhos acham que a menina ou a adolescente está à disposição. Isso guarda muita semelhança com o tempo da escravidão. Muitas meninas são estupradas nas casas onde trabalham. Elas vivem em uma situação de vulnerabilidade, ficam expostas a todo tipo de abusos e exploração e ficam com medo de perder o salário e o emprego”, detalha. Ainda de acordo com Sara, é muito comum também a jovem engravidar e ser expulsa de casa, levando a culpa pela violência sexual, como foi o caso de Laura, atendida pela Plan.

O trabalho infantil doméstico viola os direitos humanos de crianças e adolescentes à vida, à saúde, à educação, ao lazer e ainda acarreta prejuízos que comprometem o seu pleno desenvolvimento físico, psicológico, cognitivo e moral. “Por ser realizado no âmbito residencial, onde não é possível uma fiscalização sistemática, expõe a criança e o adolescente a uma série de violações de outros direitos, desde a baixa remuneração e longas jornadas de trabalho até atos de violência e abusos sexuais”, explica a coordenadora da Plan em Salvador.

Segundo o Decreto 6481/2008, o trabalho doméstico apresenta sérios riscos ocupacionais às crianças, tais como posições não ergonômicas e movimentos repetitivos, tracionamento da coluna vertebral, sobrecarga muscular, traumatismos, queimaduras, entre outros.

Raça e gênero

Os dados destacam a questão racial e de gênero do trabalho infantil doméstico: 94% das crianças e adolescente são meninas e 73,5% são negras, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2014. Além disso, a questão econômica também pesa, já que a incidência do trabalho infantil é maior nos grupos socioeconômicos mais vulneráveis: 66,4% estão inseridos em domicílios cuja renda por pessoa (per capita) é de até um salário mínimo, segundo a Pnad 2014.

“A sociedade acha que é para o bem da menina [trabalhar como empregada doméstica]. Muitas vêm do interior para estudar e as pessoas dizem que ‘pelo menos ela tem casa, comida e está estudando’. Mas sabemos que muitas vezes isso não acontece, a jovem não consegue conciliar os estudos. Existem casos em que o trabalho é análogo à escravidão, não tem remuneração, a criança recebe em troca só alimentação”, relata a coordenadora da Plan.

Comparando o rendimento médio das crianças e adolescentes com idade entre 10 e 17 anos ao valor do salário mínimo vigente em 2014 (R$ 724), é possível ver que praticamente em todas as atividades o rendimento médio era inferior ao salário mínimo. No caso dos serviços domésticos, o rendimento era muito inferior ao salário mínimo da época: apenas 33,6%. Para se ter uma ideia, nas atividades de agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e aquicultura, a remuneração em média correspondia a 59,9% do salário mínimo.

Dupla jornada

De acordo com dados divulgados pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) em 2016 – compilados na publicação “O Trabalho Infantil nos Principais Grupamentos de Atividades Econômicas do Brasil” -, 58,9% (1.962.980) das crianças e adolescentes que trabalhavam em outras atividades econômicas ainda realizavam afazeres domésticos, isto é, exerciam jornada dupla de trabalho.

No setor da Agricultura, pecuária, silvicultura, pesca e aquicultura, 58,2% (596.586) das crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos também realizavam afazeres domésticos. Já no comércio, esse número foi de 52,4% (416.646) e na construção civil foi de 50,9% (117.912). Os dados são da publicação “O Trabalho Infantil nos Principais Grupamentos de Atividades Econômicas do Brasil”, do FNPETI.

Evasão escolar

Entre as consequências do trabalho infantil doméstico está a evasão escolar, como foi o caso de Laura. Além disso, especialista afirmam que há uma piora de rendimento na sala de aula devido ao cansaço. Esse é o caso de Joana*, moradora do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. A adolescente de 15 anos era responsável por cuidar dos sete irmãos, limpar a casa, cozinhar e lavar roupa.

O caso de Joana foi atendido pelo SEAS Campo Limpo e M’Boi Mirim, coordenado pela organização Sociedade Amiga e Esportiva do Jardim Copacabana, após uma ação nas ruas do bairro, que encontrou um dos irmãos de Joana vendendo geladinho. “Ele estava com um machucado no rosto, perguntamos o que tinha acontecido. Pedimos o nome da escola que ele estudava e fomos atrás da família. Constatamos que a irmã dele de 15 anos era responsável por cuidar de todos os irmãos, de dar banho, fazer comida e levar para a escola”, detalha Danielle Gomes Oliveira, técnica psicóloga do SEAS que atendeu o caso. Segundo Danielle, Joana tinha muita dificuldade na escola, era tímida, não tinha muitos amigos e não saia para brincar.

Um olhar mais atento de uma professora pode fazer a diferença na hora de identificar o trabalho infantil doméstico, assim como outras formas de trabalho infantil. “O professor pode perceber coisas incomuns nos alunos, que podem indicar também outros tipos de violência. Um primeiro sinal são as faltas recorrentes e sem justificativa, já que muitas vezes o trabalho pode coincidir com o horário escolar”, explica Sara, coordenadora da Plan.

Há crianças e adolescentes que trabalham e frequentam a escola regularmente, mas o trabalho infantil tira o tempo do estudo e afeta o rendimento. Em geral, a criança apresenta falta de tempo para fazer o dever de casa, falta de vivência no brincar e no esporte, dores nas costas e cansaço excessivo.

Estudos apontam que quanto mais precoce é a entrada no mercado de trabalho, menor é a renda obtida ao longo da vida adulta. “As crianças que não tiveram a chance de estudar ou que tiveram o desempenho escolar atrapalhado pelo cansaço conseqüente do trabalho infantil doméstico têm pouca chance de conseguir uma requalificação profissional quando se tornam adultas”, pondera a coordenadora da Plan.

A maioria dos casos de trabalho infantil doméstico atendidos em São Paulo foram descobertos durante a apuração de outras violações de direitos, de acordo com Vanessa Helvécio, coordenadora do Creas M’Boi Mirim. Por ser uma forma que ocorre dentro das casas, o trabalho doméstico é um dos mais desafiadores em termos de identificação.

“Geralmente, quando vamos apurar outra violação de direito é que identificamos o trabalho infantil doméstico. Por exemplo, quando a criança está faltando muito na escola, em razão dessa demanda podemos identificar o trabalho infantil”, explica a coordenadora do Creas M’Boi Mirim. Ainda segundo Vanessa, por ser mais comum, o trabalho infantil doméstico é pouco identificado e mais tolerado. “Uma criança de 11 anos cuidando de um irmão de dois anos passa despercebido pelos vizinhos”, diz.

O trabalho realizado pela assistência social do município consiste em acompanhar a família, após a constatação do trabalho infantil. “Fazemos monitoramento do caso para criar um vínculo, fazemos visitas domiciliares e encaminhamos para a rede proteção, inserção em programas do governo para transferência de renda, etc”, conta Danielle do SEAS.

Na Bahia existe um fluxo de migração de adolescentes para trabalhar como empregadas domésticas nos estados de Minas Gerais e Bahia, de acordo com a coordenadora da Plan Salvador. “Existe um fluxo interno também, de meninas que saem do interior da Bahia, principalmente do Sul, para trabalhar em Salvador”. Em São Paulo, de acordo com Danielle do SEAS, são poucos casos de meninas vindas do Nordeste. A maioria é do próprio estado de São Paulo.

Ajuda X trabalho

Em algumas famílias os filhos ajudam as mães com pequenas tarefas domésticas. “É até muito legal e proveitoso para as crianças aprenderem desde cedo a arrumar a própria cama, por exemplo. Mas isso não é trabalho doméstico infantil. É apenas uma demonstração de cooperação entre os membros da família”, diferencia Sara, coordenadora da Plan.

É importante diferenciar ajuda de trabalho. O trabalho infantil doméstico é o trabalho constante de crianças e adolescentes, menores de 16 anos, realizado na casa de terceiros ou em sua própria casa, remunerado ou não, que consiste em fazer faxina na casa, lavar, passar, cozinhar e cuidar dos filhos dos donos da casa ou dos irmãos mais novos. Como os outros tipos de trabalho infantil, prejudica o desenvolvimento, a saúde física e mental das crianças. De acordo com Benedito Santos, especialista em Proteção à Criança e Adolescente do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), para alguma pessoas não é claro a diferença entre ajudar em casa e o trabalho infantil doméstico. “Essa falta de definição ou de clareza assusta quando você fala na proibição do trabalho infantil doméstico. Mas é importante dizer que no trabalho infantil crianças e adolescente têm responsabilidades da reprodução da força de trabalho, elas assumem grandes responsabilidades, seja remunerado ou não”, explica.

Quando o Estado não garante o acesso à algum direito – como à Educação, ele acaba colaborando com o trabalho infantil. “Por exemplo, quando crianças não têm acesso à vaga em creches e irmãos mais velhos precisam cuidar dos mais novos ou até mesmo a desigualdade social, que implica as crianças a ajudarem a complementar a renda familiar”, exemplifica Sara.

Conscientização

O trabalho infantil ainda é um tabu porque boa parte da sociedade defende essa prática, uma parte significativa também trabalhou na infância. “Quando fazemos formação com conselheiros tutelares, professores, agentes de saúde vemos o quanto isso ainda está enraizado. A maioria é a favor do trabalho infantil. É muito difícil convencer que é uma violação, que deixa a criança vulnerável a diversas outras violências”, relata a coordenadora da Plan, organização que tem uma série de projetos voltados para a prevenção do trabalho infantil e combate ao abuso sexual de meninas.

O primeiro desafio é mudar o olhar, ressignificar a visão que as pessoas têm sobre o trabalho infantil e mostrar que a criança é um sujeito de direitos e não cabe a ela resolver os problemas da família. “A responsabilidade de sanar problemas econômicos é da família e do governo, por meio de políticas públicas para geração de renda, transferência de renda, capacitação etc. A Plan tem vários projetos que trabalham para conscientizar diversos setores da sociedade: agentes públicos, escolas, famílias em situação de vulnerabilidade e empresários”, relata Sara.

O Unicef está desenvolvendo o projeto “Busca Ativa Escolar ”, uma das estratégias do programa “Fora da Escola Não Pode!”, para ajudar os municípios a combaterem a exclusão e evasão escolar.  O projeto busca “apoiar os governos na identificação, registro, controle e acompanhamento de crianças e adolescentes que estão fora da escola ou em risco de evasão”, diz um trecho do site do projeto. Para se ter uma ideia, o município de São Paulo tem 173.815 crianças de 4 a 17 anos fora da escola , de acordo com o Unicef. Desse universo, 42% são de famílias com renda até 1/2 salário mínimo; e 30% com renda até um salário mínimo; e 27% com renda superior a um salário mínimo.

Histórias que se repetem

A história de Laura que abriu essa reportagem é um exemplo de como o ciclo de trabalho infantil se perpetua por conta da desigualdade social. A mãe da adolescente já havia sido empregada doméstica da mesma família, sendo babá do patrão de Laura quando ele tinha entre 3 e 12 anos. A mãe de Laura foi trazida de Berimbau, povoado de Feira de Santana, aos 11 anos para trabalhar na casa dessa família. Ela não recebia nenhum tipo de remuneração, apenas casa e comida.

Laura sonha em voltar a estudar e quer ser advogada para defender crianças que passam pela mesma situação que ela. Já Joana foi encaminhada pelo SEAS para atividades no contraturno e tem feito curso de teatro, que era seu desejo. 

  • O nomes dos personagens foram alterados para preservar a identidade das crianças e adolescentes

Comente:

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.