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Aliciamento para o trabalho infantil: um problema ainda invisível na sociedade

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Trabalho infantil no cemitério do Araçá no Dia de Finados
Crédito: Tiago Queiroz

Por Bianca Pyl 

No Brasil, atualmente, estima-se que 2,4 milhões de crianças estejam trabalhando em diversas atividades. No caso da cidade de São Paulo, crianças e adolescentes são vistos nas ruas vendendo balas, doces, panos de pratos, nos lava-rápidos limpando carros e também em pontos de vendas de drogas.

Todas essas atividades são consideradas Piores Formas de Trabalho Infantil por todo o risco que oferecem às crianças e adolescentes. A criança e o adolescente nas ruas estão sujeitos a uma série de riscos: sofrer acidentes, como atropelamentos, violência de todo tipo, abuso sexual e uso de drogas.

Mas como essas crianças e adolescentes foram parar nas ruas para trabalhar? Para apurar essa questão, a reportagem da Rede Peteca ouviu diversos agentes que atuam no combate ao trabalho infantil em busca de identificar esse elo, que muitas vezes é invisível mesmo para quem atua na temática.

A maior parte das crianças e adolescentes que estão no trabalho infantil na cidade de São Paulo são aliciadas pelo pai, pela mãe ou por algum parente, de acordo agentes da assistência social.

Existem, ainda, muitos casos em que o aliciador, com consentimento do responsável, leva as crianças e os adolescentes para trabalhar, principalmente, no comércio ambulante, na entrega de panfletos e outros serviços realizados nas ruas de São Paulo.

Dificuldade de identificação

Segundo Itamar Moreira, pedagogo e supervisor de convênios do Instituto Social Santa Lúcia, que atua na questão do trabalho infantil, é muito difícil chegar até a pessoa que fica observando o trabalho nas ruas à distância.

“Quando abordamos a criança nas ruas, os aliciadores já fogem do local. É muito difícil de pegar quando eles não são membros da família. Quando se trata de algum familiar, é possível dialogar com a pessoa e inserir nos programas assistenciais”, contou Itamar.

É o que geralmente acontece com as famílias abordadas no Jardim Ângela, de acordo com Caio Yudji, psicólogo da rede de proteção básica de Diadema, que coordenou a equipe de abordagem na área de trabalho infantil no Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS) Campo Limpo M’ Boi Mirim.

Como os pais costumam trabalhar junto com os filhos nos faróis, as orientadoras socioeducativas conseguem realizar a abordagem e o encaminhamento adequado aos serviços de proteção.

De acordo com Vanessa Helvécio, coordenadora do CREAS M’Boi Mirim (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), apesar da assistência social saber que o aliciamento existe, o problema é competência da polícia. “Por isso é difícil conseguir dados.”

Indícios de redes de exploração

Além do aliciamento por familiares e conhecidos, é importante ressaltar que há indícios da existência de redes para aliciar e explorar o trabalho infantil nas ruas de São Paulo, de acordo com Renato Bignami, auditor fiscal do Trabalho que atua no combate ao trabalho escravo.

Na avaliação dele, existe um padrão de trabalho e uma metodologia dificilmente ensinada por pai e mãe, que estão na mesma situação de vulnerabilidade. Um exemplo disso é o tempo exato que a criança tem enquanto o farol está fechado para deixar as balas no retrovisor do carro, passar e recolher antes de o farol abrir.

Crédito: Tiago Queiroz

Segundo Renato, outra questão a ser observada são os produtos vendidos, muitas vezes de uma mesma marca, mesmo em regiões diferentes. “Muitas vezes a bala vendida no farol da Avenida Nove de Julho com a Avenida Brasil é a mesma que está sendo vendida na Consolação com a São Luís”, exemplificou.

Por isso, na opinião do auditor, é preciso fazer uma investigação mais detalhada, observar cadeias produtivas e outras questões que passam despercebidas no dia a dia.

Aliciador “protege”

Há alguns anos, havia muitas crianças trabalhando como engraxates no Centro de São Paulo. Mas essa figura saiu de cena por conta da violência, principalmente relacionada aos usuários de crack, de acordo com Jorge Arthur, técnico da assistência social.

As crianças apanhavam e eram roubadas facilmente. “Como os engraxates tinham dinheiro vivo em mãos, eram roubados por pessoas em situação de rua, usuárias de crack. A violência fez com que eles deixassem esse trabalho, mas isso não significa que deixaram de trabalhar”, ponderou.

É justamente por conta da violência que a figura do aliciador ganha mais força – afinal, ele “protege” a criança e o adolescente de serem roubados ou de apanharem nas ruas onde trabalha. “O aliciador atua em uma malha de precariedade e as mães são super agradecidas a ele, porque ele não deixa ninguém bater no filho e entrega o dinheiro na mão dela”, relata Jorge.

Territórios

O aliciamento para o tráfico de drogas ocorre, na maioria das vezes, no mesmo território onde vivem os adolescentes, com a oferta de trabalho feita diretamente a eles. No caso do comércio ambulante e outros serviços, as crianças e adolescentes se deslocam das periferias para bairros mais centrais e com uma quantidade maior de comércio.

Nesses casos, a figura do aliciador cumpre o papel de levar e trazer as crianças e adolescentes. Entre os principais bairros para onde as crianças e adolescentes são levados para vender produtos ou serviços estão Moema, Vila Mariana, Pinheiros, Jardins, Vila Madalena, região da Paulista e também a região Central da cidade.

As crianças acompanhadas pelo CREAS M’Boi Mirim não trabalham no território onde moram. Elas se deslocam para outras regiões, de acordo com Vanessa Helvécio, coordenadora do órgão.

“Nessa região temos uma característica atípica em relação ao trabalho infantil. As crianças e adolescentes trabalham principalmente aos finais de semana. Durante a semana, elas frequentam a escola. Algumas vezes já estão inclusive inseridas em projetos e programas de proteção e combate ao trabalho infantil.”

Legislação

O aliciamento e a exploração econômica do trabalho infantil ainda não são considerados crime no Brasil. O Brasil assumiu uma série de compromissos para erradicar o problema, mas não aprovou nenhuma lei que criminaliza a prática.

projeto de lei 6895/2017 altera o artigo 207 do Código Penal para caracterizar como crime a exploração do trabalho infantil. De autoria do senador Paulo Rocha (PT/PA), já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e a última movimentação da matéria na Câmara dos Deputados foi em abril de 2018.

Outro projeto de lei que tinha objetivo semelhante, o n° 53, de 2016, de autoria do então senador e atual prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (PRB/RJ), pretendia alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para tipificar o crime de exploração de trabalho infantil – incluindo a questão do aliciamento -, com pena de dois a quatro anos de reclusão. Contudo, o projeto de lei foi arquivado no final de 2018.

Para o aliciamento de trabalhadores de um local para outro em território nacional, o Código Penal prevê pena de detenção de um a três anos e multa. Conforme o artigo 207, “a pena abrange o recrutamento de trabalhadores para outra região mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia, ou não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. Esta pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima tem menos de dezoito anos de idade, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental”.

De acordo com Lívia Ferreira, auditora fiscal do Ministério da Economia em São Paulo, quando um adulto é aliciado para trabalhar em outra cidade ou estado, algumas vezes ele leva junto o filho ou filha. “Às vezes o adolescente vai com um parente e, em poucos casos, sozinha”, explicou a auditora fiscal do trabalho, que atua no combate ao trabalho escravo.

Ainda de acordo com a auditora fiscal do Trabalho, em fiscalizações de combate ao trabalho escravo, as crianças e adolescentes são os primeiros “a sumirem”. Isto é, fogem do local ou são escondidas para não ser configurado o trabalho infantil. “Às vezes ficamos sabendo que tinha algum adolescente trabalhando só depois da fiscalização já ter sido finalizada”, relatou.

Ciclo familiar se repete

As famílias de crianças e adolescentes que trabalham vivem em condições sociais vulneráveis e normalmente os pais têm baixa escolaridade e trabalham no mercado informal.

“As famílias têm condição social muito difícil e a criança vai parar nos faróis como uma solução para aumentar a renda”, explica Caio Yudji,ex-técnico psicólogo do SEAS Campo Limpo M’Boi Mirim – que atende os bairros Paraisópolis, Campo Limpo, Jardim Ângela e M’Boi Mirim.

Na avaliação de Caio, o trabalho infantil tem relação direta com questões econômicas e também é algo enraizado nas famílias. Geralmente os pais também trabalharam quando eram crianças. Como a família não consegue romper a vulnerabilidade social, o ciclo do trabalho infantil se mantém por gerações.

“Os casos chegam para o SEAS porque são acompanhados por algum serviço ou porque identificamos no monitoramento do território. Algumas orientadoras sociais percorrem os bairros em avenidas e praças para ver se encontram crianças e adolescente no trabalho infantil. Com os dados das crianças em mãos, começamos o atendimento psicossocial e fazemos visitas às casas das famílias, coletando dados relevantes, como o nome da escola que a criança frequenta para visitar posteriormente e checar a frequência e o desempenho escolar”, relatou o psicólogo.

Após a abordagem, as famílias são encaminhadas para programas de transferência de renda, como Bolsa Família ou PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), por meio do Cadastro Único. As crianças e adolescentes que já frequentam a escola são encaminhados para atividades culturais e esportivas nos Centros da Criança e Adolescente e Centros da Juventude, que existem no município de São Paulo.

Crédito: Tiago Queiroz

O SEAS também busca inserir os jovens em cursos profissionalizantes ou vagas de Jovem Aprendiz para realmente quebrar o ciclo do trabalho infantil. O papel do SEAS se estende também para explicar às famílias quais direitos elas têm e ajudá-las em novas perspectivas de vida sem ter de recorrer ao trabalho infantil.

“É um trabalho a longo prazo. Geralmente, no início existe uma dificuldade de acesso à família, que teme sofrer punição. O nosso foco é acompanhar para que as crianças tenham um desenvolvimento melhor”, finalizou Caio.

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