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Reforma tributária mantém desigualdades e não ajuda a reduzir trabalho infantil

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Crédito: Tiago Queiroz

A simplificação dos impostos e a redistribuição das taxas entre os estados estão entre as propostas encaminhadas pelo Congresso Nacional e que devem ser aprovadas em 2020. Segundo especialistas, a reforma tributária em curso não deve, no entanto, diminuir as desigualdades sociais e, portanto, não vai ajudar a reduzir o número de crianças e adolescentes explorados pelo trabalho infantil, que fazem parte de um ciclo de pobreza familiar em que precisam contribuir com a renda.

Bernard Appy, economista brasileiro, mentor da proposta em tramitação no Congresso, afirma que a reforma tributária vai precisar escolher o melhor desenho para alcançar o objetivo de que a tributação limite o mínimo possível o crescimento. “Se for mal desenhada pode causar efeito contrário. O objetivo é ter diminuição da desigualdade, mas, para isso, além da questão tributária, tem que pensar no gasto público”, ressalta. Nesse caso, segundo Appy, é importante, ao criar um imposto sobre consumo aplicar esse recurso para financiar programa de transferência de renda. “O imposto é progressivo, mas a receita causa efeito contrário. É preciso utilizá-lo para fazer transferência de renda”, afirma.

Outra medida é utilizar o imposto de renda e o imposto sobre patrimônio de forma progressiva. “Esses são os principais instrumentos”, reforça. Ele lembra que há quatro categorias de tributo: renda, patrimônio, salário e consumo. “Temos problemas em todas as categorias de tributo na questão da progressividade”, afirma. No consumo, o economista aponta distorções com efeitos negativos no crescimento do país. “A tributação é a mesma em todas as faixas de renda. Isso favorece aos mais pobres ao desonerar a cesta básica, mas favorece aos mais ricos ao desonerar serviço”, aponta.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, que ajudou a elaborar e está em tramitação no Congresso, pretende corrigir distorções nos tributos de consumo que impedem o crescimento. “Deve gerar aumento de 10 pontos percentuais no PIB potencial do Brasil em 15 anos”, projeta. A proposta prevê alíquota uniforme para todos os bens e serviços. “Não tem efeito distributivo. Tributa mais cesta básica, mas também os serviços. Isso mantem a neutralidade por faixa de renda”, afirma.

Cobrar o imposto sobre produtos e devolver por meio de crédito um valor incidente na cesta básica para os 10% mais pobres causa, segundo Appy, um benefício maior do que a desoneração total da cesta básica. Apesar de acreditar que a reforma seria positiva para os 35%, cerca de 77 milhões de pessoas, que estão nos cadastros sociais do governo, o economista reconhece que “o benefício na diminuição da desigualdade social é pequeno”. Quando questionado se a mudança deve ajudar a diminuir o trabalho infantil, Bernard Appy é categórico em dizer que esse “não é o foco da reforma”, emendando que “trabalho infantil se combate com repressão”.

Para a redução da desigualdade social, a “grande questão é se aumento de receita vai ser transformado em mais gasto público ou reduzir outros tributos”, considera o economista. Ele lembra que o presidente do Congresso, Rodrigo Maia (DEM-RJ) tem tratado o tema como prioridade, mas que o governo não apresentou proposta de reforma ainda. “Mesmo sem esse respaldo, há chance de aprovar até o fim do primeiro semestre de 2020. Se o governo apoiar, pode ser mais rápido”, avalia.

O advogado e professor titular de direito financeiro da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Sacuri Scaff lembra que a proposta da PEC 45, apresentada no Congresso pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), trata apenas de imposto sobre consumo. “Unifica alíquota, o que é péssimo para a desigualdade. Essa alta tributação taxa o mesmo tanto para pobre quanto para rico. Hoje temos alíquota menor para arroz, feijão e maior para perfume, por exemplo. Na nova proposta, do óleo ao avião, tudo terá a mesma alíquota”, ressalta.

Já a Proposta 110, do ex-deputado Hauly (PSDB-PR), em pauta no Senado, é a que está mais avançada. “Tem proposta semelhante à PEC 45, de unificar a alíquota de consumo com a mesmo tributo no Brasil todo, mas no trâmite dela, houve alteração que prevê que estados poderão escolher entre algumas alíquotas, respeitando o federalismo e as diferenças”, explica Sacuri Scaff.

A terceira proposta de reforma tributária, feita pelo Sindifisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita), mas que não foi apresentada oficialmente nas casas de lei, considera que “não é importante tratar de consumo, mas sim tributar renda e patrimônio para ter justiça fiscal”. “Essa ideia ainda não está concretizada como proposta”, reforça.

O professor de Direito na USP acredita que nenhuma das três propostas deve ser a que irá para frente. “Todos estão esperando a proposta do governo, que está sendo elaborada para 2020. Enquanto isso não acontecer, não vai andar”, acredita. Ele, no entanto, acredita que o ministro da Economia, Paulo Guedes, deve apresentar proposta que tende a ser aprovada até meados de 2020. “Também deve focar nos impostos sobre consumo. Não acredito em reequilíbrio fiscal que reduza as desigualdades nesse momento”, afirma.

Justiça fiscal

O economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) Clóvis Scherer lembra que a proposta de Bernard Appy, por meio da PEC 45, dá ênfase na simplificação do sistema tributário, incorporando tributos municipais e estaduais. “Combate a guerra fiscal, diminui os custos das empresas, mas não existe preocupação da justiça tributária, a não ser da distribuição entre regiões”, afirma.

Scherer lembra que a nova legislação muda princípios da tributação, que passa a ser no destino e não na origem. “Favorece estados mais consumidores em detrimento aos que são mais produtores. Isso será feito com um prazo longo para reduzir impacto”, lembra.

Já a injustiça do sistema tributário não está no foco dessa reforma. “Para entidades da sociedade civil essa injustiça fiscal precisa ser atacada com urgência. As pessoas deveriam contribuir com impostos na proporção da sua renda, quanto maior a capacidade de contribuir mais deveria ser o imposto. Ricos deveriam pagar mais, como está previsto na Constituição”, defende.

A maior parte dos tributos, segundo o economista do Dieese, está em imposto indireto, embutido em produtos consumidos, não há variação conforme a renda da pessoa.

“O imposto é o mesmo independente da renda de quem compra arroz, por exemplo. Dessa forma, famílias pobres gastam mais com taxas proporcionalmente do que pessoas ricas”, afirma.

Para deixar o sistema tributário menos desigual, é preciso aumentar o imposto sobre a renda e diminuir os que incidem sobre produtos. “A solução seria reduzir os tributos de consumo como PIS/Confins/ISS e aumentar os sobre renda e patrimônio, como IPTU e IPVA”, afirma Scherer.

No Brasil, o imposto sobre renda a partir de R$ 5 mil é de 27% enquanto em outros países chega a 40%. Além de tributar mais as famílias mais ricas, outra solução apontada pelo economista é arrecadar mais do imposto territorial rural e ter maior progressividade no IPTU.

“Já o imposto sobre herança é de 8%. É baixo em relação a outros países”, lembra, ressaltando que as reformas tributárias apresentadas não focam nessa questão. “Há preocupação apenas em simplificação da carga tributária e não há medidas de proteção contra a pobreza. Além disso, quando tem medida de unificação de imposto, isso impacta previdência e seguridade social, como é o caso da Confins (seguridade social) e PIS (seguro desemprego). Isso pode gerar subfinanciamento da seguridade, o que pode impedir que esses impostos assistam questões sociais”, ressalta.

O economista Eduardo Moreira, ex-banqueiro que hoje é ativista de uma economia mais inclusiva, ressalta que a reforma tributária é mais importante do que reforma da previdência pois pode ajustar o sistema tributário.

Em entrevista ao Jornal do Comércio, o economista avalia que a reforma tributária pode reativar rapidamente a economia brasileira, desde que aumente a tributação sobre a renda e diminua a incidência sobre o consumo. Contudo, avalia que as reformas que tramitam no Congresso Nacional não promovem essas medidas e apenas simplificam o sistema tributário brasileiro.

Conforme Moreira, isso é benéfico, mas não o suficiente para ter um efeito abrangente na economia. “Precisamos reequilibrar a tributação. Podemos fazer isso mantendo a arrecadação. Só que, em vez de cobrar dos pobres, devemos cobrar mais dos ricos. Se fizermos isso, imediatamente ativamos a economia, afinal quando você diminui os impostos sobre os pobres, faz com que eles passem a consumir mais”, disse ao periódico.

A Oxfam Brasil, organização apartidária e não vinculada a governos e instituições religiosas, que tem como objetivo combater as desigualdades, fez uma lista com “10 ações urgentes Contra as Desigualdades no Brasil”. Entre elas, está equilibrar o sistema tributário.

Segundo a organização, o Brasil se apoia em imposto indiretos em consumo e serviços, cobrando o mesmo de ricos e pobres, o que incide mais na renda daquelas que têm menos dinheiro. A proposta, nesse caso, é equilibrar o sistema tributário, reduzindo o peso da tributação sobre o consumo (indireta) e aumentando o peso da tributação sobre o patrimônio e renda (direta) no topo da pirâmide social.

“Um reforma tributária redistributiva pode jogar a conta para os mais ricos e aliviar a dos pobres, mantendo a mesma carga, sem reduzir e sem aumentar”, explica o coordenador de campanhas da Oxfam Brasil, Rafael Georges.

Outra defesa da organização é de restabelecer a tributação sobre lucros e dividendos e aumentar a tributação sobre herança de maneira progressiva. “Os salários são tributados na fonte. Já os lucros de dividendos não têm cobrança de taxas. Isso ocorre apenas no Brasil e na Estônia. Tributar os dividendos seria deixar o sistema mais justo. O patrimônio dos mais ricos também não tem cobrança de impostos como deveria”, ressalta Georges.

Desigualdade

O estudo “A Criança e o Adolescente nos ODS – Marco zero dos principais indicadores brasileiros”, da Fundação Abrinq, revelou o desafio de se superar a pobreza.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), de 2015, 27% dos brasileiros vivem hoje com até meio salário mínimo por mês. De acordo com especialistas, a necessidade de uma família pobre aumentar a renda por meio de outros membros do grupo familiar, inclusive das crianças, é que faz a relação entre a pobreza e o trabalho infantil. As atividades desempenhadas pelas crianças não exigem qualificação e o ganho é muito pequeno se comparado ao aprendizado.

Isa Oliveira, secretária executiva Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil (FNPETI), lembra que a pobreza não é simplesmente pouca renda ou nenhuma renda. “Há a privação aos direitos. Não acesso a escola de qualidade, não acesso à informação, não acesso a moradia digna. A pobreza determina o trabalho infantil e ele vai contribuir para a privação de muitos direitos”, reforça.

A falta de recursos afeta também, segundo Isa Oliveira, o acesso, a permanência e o direito de aprender. São famílias que possuem privação aos direitos, de acesso as políticas públicas que garanta moradia adequada, escola, direito de não trabalhar para as crianças e que dependem de rendas de programas sociais.

Nos últimos anos, algumas foram prejudicadas por mudanças nos programas sociais. Famílias que recebiam o PETI foram incluídas no Bolsa Família, o que fez com que 40% dos beneficiados perdessem a renda, uma vez que o PETI dava direito a famílias com até um salário mínimo e o bolsa família contempla quem recebe até meio salário mínimo.

A secretária executiva do FNPETI lembra ainda da relação do trabalho infantil com o trabalho análogo à escravidão. “Muitos trabalhadores adultos em situação degradante foram trabalhadores infantis, que abandonaram a escola, ingressaram no mercado de trabalho em atividades perigosas, precárias e acabam sendo aliciados em trabalho escravo. Isso vai perpetuando um ciclo, de pobreza, privação dos direitos. É algo violento”, afirma.

Para reverter a situação, a especialista cita a necessidade da incidência política para que as políticas públicas sejam implementadas. “Os maiores cortes e o contingenciamento de orçamento do atual governo é para políticas sociais. Há aumento do orçamento para pagamento de juros da dívida pública, redução drástica para ações e políticas sociais, educação, saúde, segurança, assistência social. Isso traz consequências enormes para o agravamento da situação atual”, considera.

Aumento da desigualdade

O Brasil, que já é um dos 15 países mais desiguais do mundo, conseguiu ver a concentração de renda aumentar no ano passado, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domicílios Contínua (Pnadc), que trata de todas as fontes de rendimento, divulgada pelo IBGE. Por qualquer medida que se use, os mais ricos no país concentraram renda, enquanto os mais pobres sofreram com queda na renda e nas condições de vida.

A renda média do 1% dos trabalhadores mais ricos subiu de R$ 25.593 para R$ 27.744, alta de 8,4%. Já entre os 5% mais pobres, o rendimento do trabalho caiu 3,2%. Nesse grupo, o ganho mensal baixou de R$ 158 para R$ 153.

Com isso, o Índice de Gini, que mede a concentração de renda e, quanto mais perto de 1, pior, subiu de 0,538 para 0,545, considerando todas as rendas das famílias – trabalho, aposentadorias, pensões, aluguéis, Bolsa Família e outros benefícios sociais. É o maior Gini desde 2012.

Uma das razões para o aumento da desigualdade em 2018 foi o aumento da precarização do mercado de trabalho, com aumento dos empregos informais. No ano passado, eram 35,42 milhões de pessoas, em média, recorde da série histórica do IBGE.

Com o aumento da concentração de renda, o topo da pirâmide no Brasil está se apropriando de uma fatia maior da renda nacional. O 1% mais rico recebe 12,2% de todos os rendimentos no país. Em 2017, essa fatia era de 11,7%. São R$ 34,8 bilhões nas mãos de pouco mais de 2 milhões de pessoas. A pesquisa do IBGE também constatou que as disparidades de rendimento são grandes entre brancos e negros. O trabalhador branco recebe 75% a mais do que pretos e pardos. A Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil já mostrou a relação de raça e trabalho infantil, com predominância de trabalhadores infantis de cor preta e parda.

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