Fome, remoção ilegal e nenhuma proteção na pandemia: a face cruel da migração de famílias venezuelanas em Roraima

Remoção ilegal movida pela Prefeitura de Boa Vista, capital do estado, deixa mais de cem crianças e adultos desalojados em plena pandemia 

Por Thaís Lazzeri
Publicado em 18/09/2020

A rua de terra batida e pedregulhos, ladeada por um matagal, guarda uma história à qual é impossível ficar indiferente. A poucos metros dali, às margens do Rio Branco, principal leito de Boa Vista (Roraima), 113 pessoas de famílias migrantes venezuelanas foram removidas de um acampamento, em plena pandemia, em uma ação comandada pela prefeitura da capital  sem ordem judicial, considerada ilegal pela Defensoria Pública da União (DPU) e por diversos movimentos sociais.

Dentre os removidos, estão 31 crianças de até 12 anos, 10 adolescentes, além de 30 mulheres e 42 homens. Parte da população removida apresentava fatores de risco para a Covid-19, como asma crônica (a maioria crianças), pneumonia, síndrome de down, complicações renais e de tireoide, além de problemas de saúde como  pedra na vesícula, fraturas e hérnias. “Estamos nas mãos de Deus”, diz *Verônica. Com medo, todos os impactados pediram anonimato. 

Crédito: Arquivo Pessoal

Para Camila Asano, advogada da ONG Conectas Direitos Humanos, há um protocolo de como fazer remoções de forma responsável em casos de risco: ter ordem judicial, notificar e explicar para as famílias os riscos envolvidos, averiguar as necessidades individuais de cada uma, dentre outros procedimentos. Nada foi seguido, afirmam os migrantes. “Não tem nuances. Era ilegal”, diz Camila. 

O defensor público da união Thiago Moreira Parry afirma que a prefeitura de Boa Vista usou um decreto municipal pré-Constituição, de 1974, que dá a prerrogativa de demolição em área de proteção ambiental. “Demolição não é sinônimo de remoção compulsória coletiva.”E continua: “Na minha opinião, a remoção das famílias foi inconstitucional, ilegal e inconvencional, porque afronta dispositivos de tratados internacionais.” 

Viver nas “mãos de Deus” não é exagero

“Viver nas mãos de Deus” não é exagero. Depois da remoção ilegal da ocupação espontânea, em 27 de abril deste ano, Verônica, mãe de quatro crianças, perdeu o pouco que tinha conseguido juntar como vendedora ambulante desde dezembro de 2019, quando entrou no Brasil para fugir da fome na Venezuela e dos confrontos entre o regime de Nicolás Maduro e a oposição liderada por Juan Guaidó

Ela e outros que viveram o despejo, realizado pela Guarda Civil Municipal armada, afirmam que, primeiro, uma retroescavadeira destruiu o acampamento Clamor do Rio, onde moravam. “Fomos cercados. Não se importaram de que havia crianças, grávidas e idosos. Como podemos nos proteger do coronavírus? Não tem como. Temos medo. Estamos vivendo como animais. Não merecemos viver assim.” O que a retroescavadeira não derrubou foi levado embora em caminhões da prefeitura. 

A conduta da prefeitura com os venezuelanos de Clamor do Rio é alvo de uma Ação Civil Pública, ao lado de Estado e da União, movida pela ONG Conectas Direitos Humanos junto da Defensoria Pública da União (DPU), o Centro de Migrações e Direitos Humanos (CMDH) da Diocese de Roraima e o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (ASAV). “E isso foi feito durante a pandemia, quando o principal é: fique em casa. E você tira aquilo das pessoas”, afirma Camila. Diz a ação: “Chama atenção que a desastrosa operação tenha ocorrido sem o mais básico respeito aos direitos humanos. Sem qualquer orientação às famílias envolvidas. Sem qualquer destinação de abrigos (nem ao menos provisórios). Sem qualquer cuidado com as pessoas. Sem qualquer respeito ao devido processo legal. E, por certo, sem qualquer justificativa razoável.” 

A ação observa que o espalhamento da população imigrante pelas ruas coloca em risco não apenas este grupo, mas causa risco de contágio com o novo coronavírus a toda população de Boa Vista. O documento questiona ainda o fato de a remoção ter sido conduzida pela Guarda Civil Metropolitana (GCM), que não teria essa competência.

Crédito: Arquivo Pessoal

Na avaliação da advogada Mayra Cardozo, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, a ação da prefeitura foi “arbitrária, abusiva, imoral e ofensiva dos direitos humanos” e que, por isso, poderia ser processada improbidade administrativa. “É verdade que existe uma visão jurídica que afirma que ocupantes de áreas públicas podem ser removidos sem ordem judicial, por se entender que seriam meros detentores e não possuidores desses bens. Todavia, também existem decisões judiciais que dizem que essa remoção, sem ordem judicial, apenas pode ocorrer legitimamente em casos de comprovada má-fé dos ocupantes. Essa forma de entender o problema me parece a correta. No caso, não se trata de uma ocupação por má-fé, mas por necessidade extrema.”

Pouco mais de quatro meses depois dessa primeira remoção, a prefeitura realizou outra, em 18 de agosto. Servidores da prefeitura destruíram cerca de 20 casas provisórias de madeira na ocupação Beira do Rio, deixando 40 pessoas, brasileiros e imigrantes, desabrigados – metade eram crianças.  

Procurada, a prefeitura enviou uma nota dizendo que a primeira ação foi legal e teve a participação da “Secretaria Municipal de Gestão Social e do Exército Brasileiro, que os transportou até um abrigo da Operação Acolhida”, e que a área onde os venezuelanos estavam era uma Área de Preservação Ambiental (APA) que seria alagada com a cheia do rio. Questionada sobre a existência da ordem judicial, no entanto, a prefeitura não apresentou o documento. Em nota, o Exército negou a participação na remoção das famílias venezuelanas. “A Operação Acolhida informa que a ocupação Clamor do Rio não era assistida e, portanto, na atividade referenciada, não houve a participação nem de militares, nem das instituições que integram a Operação Acolhida.”

A Operação Acolhida nasceu em 2018 para acolher migrantes e refugiados venezuelanos que chegam ao Brasi. O Exército é responsável. 

Em relação à remoção ocorrida em agosto, a prefeitura divulgou nota afirmando que “se trata de uma área pública, de preservação permanente, onde é ilegal a permanência de pessoas em situação de moradia”.  

O juiz federal Bruno Hermes Leal determinou, em maio, que o município, o estado e a União se manifestem sobre a remoção. A ação pede abrigo à famílias e inclusão no auxílio emergencial de R$ 600 às famílias, além de proibir novas remoções nas mesmas condições. 

A prefeitura de Boa Vista informou que “todos os pedidos de Ação Civil Pública contra o município foram negados pela Justiça Federal, dando razão à iniciativa do Executivo Municipal na preservação da vida e das áreas públicas de preservação ambiental.” Procurada, a Justiça Federal não respondeu até a publicação deste texto.

Sem trabalho, sem alimentação e sem moradia

O monitoramento de proteção de ocupações espontâneas de Boa Vista com 1.313 pessoas e 410 entrevistas, publicado em junho de 2020 pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur), mostrou que, indagadas sobre necessidades prioritárias, 29% responderam trabalho, 22% alimentação e 17% moradia. Cerca de 40% comem duas ou menos refeições por dia. 

“A gente está nesse desafio, porque o atendimento presencial foi suspenso, mas a vulnerabilidades não diminuíram na pandemia. Ao contrário. A maioria dos migrantes sobrevivia com trabalhos informais, então foram os mais impactados pelas medidas de isolamento da Covid 19”, afirma a irmã Telma Lage, coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima. Com a ajuda da Diocese, Juan Zamora, 42 anos, venezuelano e pastor evangélico, conforta famílias como a dele com com doações. “Colhemos latinhas para sobreviver.” 

A lista de recomendação do Ministério da Saúde na prevenção à Covid-19 é impraticável para os migrantes desalojados com crianças que sobrevivem sem teto, saneamento básico, eletricidade e, agora, sem tudo o que já tinham conseguido. “Ainda assim, aqui (a floresta) é melhor do que o trauma de viver na rua”, diz Verônica. 

Crédito: Arquivo Pessoal

Tampouco se sabe quantos são os migrantes contaminados pela  Covid- 19. Isso porque o mapeamento do Ministério da Saúde excluiu da ficha de notificação de covid19 o campo para nacionalidade. “O direito ao mapeamento da pandemia na população migrante é negado no Brasil”, afirma o sanitarista haitiano James Berson Lalane. No Brasil há seis anos, Lalane é aluno da pós-graduação do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), onde estuda migração e saúde.  

Em Boa Vista, convencionou-se dividir os migrantes venezuelanos em grupos. O primeiro, formado por cerca de 7 mil pessoas distribuídos em 13 abrigos e um centro de passagem da Operação Acolhida, organizado pelo Exército. O segundo, dos que vivem em uma das 17 ocupações reconhecidas pelo poder municipal – a maioria em prédios desocupados. O terceiro, por cerca de 600 venezuelanos abrigados na rodoviária da cidade. O quarto grupo são os dos que vivem em residências com mais de uma dezena de cômodos – o aluguel, de R$ 300, saltou para R$ 500 na pandemia, e em cada quarto vivem duas famílias. E, por fim, as ocupações espontâneas, como aquela em que Verônica vivia com os filhos. Os critérios para classificar  uma ocupação como reconhecida ou espontânea tampouco são claros. A ocupação de Clamor del Rio não tinha sido catalogada pela Acnur, que monitora e faz a contagem das ocupações periodicamente. 

A situação de extrema vulnerabilidade das crianças venezuelanas obrigadas a migrar para países da América Latina, como o Brasil, piorou com a pandemia. E pode ser contada em números: uma em cada três crianças dorme com fome, segundo pesquisa feita pela organização internacional de ajuda humanitária Visão Mundial. “Foi muito evidente para nós que as condições que incidem na vulnerabilidade aumentaram rapidamente”, afirma Luis Corzo, diretor de Resposta Humanitária da ONG. O estudo, realizado em abril e publicado em junho, alcançou 392 crianças venezuelanas que vivem no Brasil (23% da população pesquisada), Chile, Colômbia, Peru, Equador, Bolívia e na própria  Venezuela.  

Crianças vivem em situação precária

Situação das crianças venezuelanas no Brasil
77% deixaram a escola 
75% vivem em um local de ocupação 
17% foram despejadas com suas famílias

*Juliana faz parte dessa estatística. Vivia na ocupação espontânea Clamor do Rio. Sem emprego, despejada de Clamor e sem o auxílio emergencial que há quatro meses, segundo ela, segue “em análise”, ela aceitou a oferta de viver embaixo de uma lona, com o marido e as filhas (a mais nova de 9 anos), em um terreno baldio nos fundos de uma casa onde vivem um brasileiro e um venezuelano. 

Não imaginava que ela mesma e as filhas seriam vítimas de assédio e abuso sexual. “À noite, eles tentavam tocar na gente. E como resistimos, dizem que nos colocariam na rua.” Outras duas famílias relataram o mesmo horror. “Fiquei tremendo, sabe quando a gente não sabe o que fazer?”, disse outra vítima dos mesmos abusadores. O caso é de conhecimento público. Brasileiros já testemunharam os gritos e pedidos de socorro,  mas nunca ninguém tentou protegê-los. A polícia foi notificada, ela diz, depois que os donos do terreno, bêbados, queimaram os braços e as pernas de um bebê. Ninguém foi preso. 

Crédito: Arquivo Pessoal

Para entender o silêncio a tantas violações de direitos humanos contra crianças, é preciso encarar a onda xenófoba acentuada pela pandemia contra os migrantes. A definição da palavra xenofobia é clara: “atitudes, preconceitos e comportamentos que rejeitam, excluem e frequentemente difamam pessoas, com base na percepção de que eles são estranhos ou estrangeiros à comunidade, sociedade ou identidade nacional”, segundo o Acnur. Denúncias de ações graves contra migrantes em Roraima chegam ao Ministério Público Federal desde pelo menos 2018. A pesquisa da Visão Mundial mostrou que a discriminação contra venezuelanos aumentou na pandemia. Cerca de 60% afirmaram terem sido discriminados por serem migrantes. A reportagem pediu ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos dados de denúncias por xenofobia este ano. Por e-mail, o ministério informou que os dados não estavam compilados e que não enviaram os dados brutos nem via Lei de Acesso à Informação. 

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