Trabalho infantil nas ruas de SP é endêmico e fica fora das estatísticas

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23/07/2018|

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Reportagem: Guilherme Soares Dias
Fotos: Tiago Queiroz

Listado entre as 93 atividades consideradas como as piores formas de trabalho infantil, o trabalho de crianças e adolescentes nas ruas é uma das atividades mais perversas, persistentes e invisíveis na cidade de São Paulo. Neste dia 23 de julho, Dia Nacional de Enfrentamento à situação de rua de crianças e adolescentes, e dia em que o massacre da Candelária, no centro do Rio, completa 25 anos, lembramos  dessa população muitas vezes ignorada.

O comércio de produtos e as rápidas performances com malabares nos faróis de vias movimentadas são as principais atividades exercidas na cidade ao longo das últimas décadas. Esse tipo de trabalho não aparece nos dados sobre trabalho infantil e há dificuldade na inserção desses meninos e meninas nas políticas de enfrentamento e prevenção.

As piores formas são aquelas que trazem os maiores prejuízos ao desenvolvimento saudável da criança e do adolescente. Todas as atividades de alguma forma trazem isso, mas algumas são mais graves ao afetar o desenvolvimento físico, psicológico e moral”, explica Elisiane dos Santos, procuradora do MPT/SP coordenadora do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil.

Em sua dissertação de mestrado da Universidade de São Paulo (USP) intitulada “Trabalho infantil nas ruas, pobreza e discriminação: crianças invisíveis nos faróis da cidade de São Paulo”, ela ressalta que a história da infância pobre é uma história de trabalho. Elisiane lembra que o Brasil, desde a colonização, utilizou a mão de obra infantil:

As crianças filhas dos escravos libertos ocupavam as ruas, lutando pela sobrevivência por meio de mendicância, pequenos trabalhos ou atividades ilícitas. Essa realidade social marca a base de sustentação da sociedade paulistana, ancorada numa desigualdade no acesso ao mercado de trabalho, penalizando sistematicamente a população negra, a par de estigmatizar ou tornar invisíveis atividades informais, nas ruas, como formas de trabalho”, contextualiza na pesquisa.

TIPOS MAIS COMUNS

Comércio ambulante (geralmente produtos de pequeno valor como balas, chocolates, frutas, refrigerantes, sorvetes); guardadores de carro; guias turísticos; guardas mirins; lavagem de veículos ou limpeza de vidros dos carros em semáforos; separação no lixo de material reciclável; atividade de malabares e engraxate.

RISCOS

Exposição a violência, drogas, assédio sexual, tráfico de pessoas, exposição a radiação solar, chuva, frio, possibilidades de acidente de trânsito, atropelamento.

CONSEQUÊNCIAS PARA A SAÚDE

Ferimento, comprometimento do desenvolvimento afetivo, dependência química, contração de doenças sexualmente transmissíveis (DST), atividade sexual precoce. Questões ligadas a problemas físicos como queimaduras, envelhecimento precoce, câncer de pele, desidratação, doenças respiratórias, hipertermia, traumatismos, ferimentos.

Números

O número de crianças trabalhando nas ruas não é preciso. A última Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) que mostra essa situação é a de 2015. Ela é utilizada pela Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil como referência, já que a Pnad 2016 sofreu uma mudança de metodologia contestada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). A Pnad 2015 traz os seguintes números:

  • 460 mil pessoas de 5 a 17 anos em situação de trabalho no Estado de São Paulo.
  • 198 mil pessoas de 5 a 17 anos em situação de trabalho na Região Metropolitana.

Em relação ao município, não temos levantamento recente, já que o Censo é realizado apenas a cada dez anos.

A última vez que o IBGE realizou contagem específica de trabalho infantil nas cidades foi no Censo de 2010, que identificou 125.821 crianças e adolescentes em situação de trabalho na capital paulista.

O próximo Censo ocorrerá em 2020. Mas o Censo faz o levantamento apenas dos 10 aos 17 anos. É diferente da Pnad que vai desde os 5 anos. Isso quer dizer que esse número de crianças trabalhando é maior, conclui a coordenadora nacional da Coordinfância.

Quem fiscaliza as denúncias na cidade é a Superintendência do Trabalho no Estado de São Paulo, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que conta com 373 auditores fiscais do trabalho (o número engloba cargos de chefias e coordenações). O órgão não informou quantas denúncias atendeu nos últimos anos.

O Ministério do Trabalho e Emprego pretende aprovar uma resolução até o fim de 2018 incorporando à rotina dos auditores fiscais a fiscalização de trabalho infantil na rua.

Onde eles estão

Os últimos censos realizados pela Prefeitura de São Paulo são de 2006 e 2007. Na pesquisa de 2006, foram identificados 538 pontos de circulação e de trabalho de crianças nas ruas, localizados em 28 das 31 subprefeituras, com maior concentração desses pontos nas regiões centrais. Segundo o levantamento, os pontos tendem a ficar dispersos nas regiões periféricas, onde a possibilidade de conseguir algum rendimento por meio de trabalho, ou mesmo esmolando, é menor.

Conheça  a história de duas irmãs que trabalham todos os dias em um cruzamento da Zona Norte de São Paulo. A mais velha, de 16 anos, está fora da escola, porque perdeu os documentos em uma enchente que atingiu a favela onde mora. A mais nova, de apenas 7 anos, ajudava mesmo resfriada. 

 

“As escolhas se pautam por uma estratégia racional de sobrevivência, em que as crianças e adolescentes procuram estabelecer o ponto de trabalho ou mendicância em locais com maior probabilidade de retorno econômico, como áreas de comércio e serviços com grande circulação de veículos e pessoas”, diz a procuradora.

“A maioria dos pontos está localizada em cruzamentos de vias de tráfego intenso, nos quais o tempo de demora do semáforo favorece o trabalho de venda de produtos ou de prestação de serviços”, reforça Elisiane em sua pesquisa. Em outro trecho, o material ressalta que parte desses cruzamentos encontra-se localizada em grandes avenidas, com tráfego intenso de veículos, expondo-as a situações de risco.

Polo boêmio

Garoto de Santo André vende balões na Vila Madalena, Zona Oeste de São Paulo, durante a Copa do Mundo.

Na Vila Madalena, Zona Oeste da cidade, a concentração de bares que funcionam à noite atrai o movimento de ambulantes – entre eles, é comum ver crianças.

Percorremos a região por três horas e meia, das 22h30 às 2h, no dia 30 de junho,  um sábado, e encontramos pelo menos cinco crianças e adolescentes vendendo balões de leds, balas e cigarros.

Um menino de 12 anos relatou trabalhar de terça a sábado, das 18h à meia-noite. Ele vem de Santo André, na Grande São Paulo, com um primo de 15 anos e outros membros da família. Tinha vendido pelo menos dez balões até às 23h. Como cada um saía por R$ 25, ele havia conseguido R$ 250 até aquele horário.

“O dinheiro vai para ajudar minha mãe, comprar roupa. Por isso eu gosto de trabalhar”, disse.

De acordo com o garoto, que cursa o 5º ano do Ensino Fundamental, durante os jogos da Copa do Mundo o movimento foi maior. Após a meia-noite, a reportagem circulou pelo cruzamento das ruas Mourato Coelho e Aspicuelta, um dos mais movimentados da noite paulistana. O menino permanecia por lá vendendo seus balões.

Ao avistar a polícia, ele e os colegas, todos com menos de 18 anos, se escondem atrás de um carro. Um dos meninos, de 17 anos, vende balas e cigarros, e afirma que vai apenas durante alguns dias. Utiliza o dinheiro para comprar roupas e sair.

Coração financeiro

Na Avenida Paulista, um dos maiores centros financeiros da capital paulista, também é comum ver crianças trabalhando. No dia 3 de julho, encontramos duas primas de 13 e 12 anos vendendo balas nas esquinas mais movimentadas. Elas dizem que estudam de manhã e vão à tarde para o centro da cidade vender bala.

Moradoras de Francisco Morato, na Região Metropolitana de São Paulo, elas afirmam ajudar a família com o dinheiro.

“Eu ajudo minha avó. Minha irmã tem 18 anos e está procurando trabalho, meus outros seis irmãos moram com minha mãe”, conta a menina, que tem como sonho conhecer a Rússia.

O casos encontrados pela reportagem foram registrados no canal SP 156 da Prefeitura de SP, para que as crianças e adolescentes sejam localizados pelas equipes do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS).  No caso do comércio ambulante, há maior dificuldade para localização, mas a informação é fundamental para se mapear os onde trabalho infantil ocorre na cidade.

Menina de 7 anos trabalha com a irmã mais velha, de 16, em cruzamento na Zona Norte de São Paulo.

Falta de dados

As piores formas de trabalho infantil – nas ruas, exploração sexual, em atividades ilícitas, entre outras – não aparecem nem no Censo do IBGE, nem na PNAD.

São pesquisas que são feitas a partir da declaração da família. Normalmente, eles não revelam esse dado. Na questão do trabalho infantil na rua, fiz uma pesquisa de campo. No questionário da Pnad, embora haja uma menção geral ao trabalho da rua, quando chega aos malabares, que é uma atividade muito presente no município, ela não tem detalhamento. Essa atividade, que seria de artista de rua, não entra no campo quando vai detalhando. Então, posso afirmar, com certeza, que com relação aos malabares, eles não estão nos números da Pnad”, afirma Elisiane.

A rua proporciona ainda uma forma diferente de trabalho, uma vez que não há um empregador direto. “Tem alguém que controla todos aqueles vendedores ambulantes. Normalmente tem família envolvida e eles acabam colocando os filhos”, ressalta a procuradora. Há, no entanto, outras atividades realizadas na rua que não permitem esse controle, como é o caso dos malabares, o objeto da dissertação da procuradora.

Trabalho infantil nos faróis de São Paulo. Crédito: Tiago Queiroz

Meninos pintados trabalham na Avenida do Estado em novembro de 2016: coloridos e invisíveis. Confira ensaio completo.

Os artistas vão para a rua, segundo ela, por conta própria, compram limões ou outros tipos de objetos, improvisam as bolas para fazer a atividade no sinal e assim vão se virando e tentando conseguir dinheiro, seja para alimentação ou para comprar brinquedos, tênis ou roupa.

Muitos dos que eu entrevistei tinham o objetivo de sustento, de ajudar. Inclusive, alguns não ficavam com o dinheiro todo, passavam uma parte para a família. Também consegui identificar que algumas famílias não são cadastradas em programas sociais. São informações passadas por eles, então não há uma precisão em relação a essas declarações”, diz.

 

Rendimento

Nas entrevistas realizadas para a pesquisa, os meninos informam conseguir de R$ 500 a R$ 1 mil por mês fazendo esse tipo de atividade. “É algo tentador. É uma possibilidade de conseguir um recurso financeiro significativo para eles. Dessa forma, é difícil competir com isso em programa social que não aponta alternativa de renda para a família. É complicado enfrentar essa situação social apenas no discurso, apenas na consciência do prejuízo que a atividade faz”, afirma.

De acordo com entrevistas realizadas junto a essa população, a maior parte das crianças e adolescentes que trabalham nas ruas dormem em residências com suas famílias e, mesmo entre aqueles que pernoitam nas ruas, a pesquisa aponta que 60,5% mantêm vínculos familiares.

“Se a maioria dos estudos e políticas para a situação de rua têm sido direcionados a questões como violência intrafamiliar, uso de substâncias psicoativas ou até mesmo questões ligadas ao cometimento de ato infracional, parece ficar claro que a questão econômica e laboral é determinante para a busca da rua como forma de sobrevivência”, afirma Elisiane, em trecho de sua dissertação.

 

As políticas públicas de combate ao trabalho infantil, como é o caso do Plano Municipal de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, são consideradas insuficientes para enfrentar o problema. Para a doutora em políticas públicas Elizabeth Serra, o trabalho infantil cresce em momentos de instabilidade econômica, como o vivido atualmente, junto com o mercado informal. “A situação do país se agrava e o mercado informal viabiliza esse tipo de trabalho”, ressalta.

Ela é autora da tese de doutorado “Exploração do Trabalho Precoce: sequestro da infância”, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), e critica o fato do registro do trabalho infantil ocorrer no mesmo cadastro de outras violações, como a violência doméstica.

“O Peti foi desmontado. O atendimento vai para o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) mas de outra forma. É atendida como qualquer outra violação, não tem equipe específica. As políticas adotadas são ineficazes. Não pode ter as mesmas estratégias de resolução. O trabalho infantil merece atendimento especifico”, avalia.

Quem atua?

O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), formulado em nível federal, é implementado nos municípios pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).

 

Subnotificação

Na dissertação, Elisiane dos Santos aponta a subnotificação dos casos registrados no Cadastro Único do Governo (CadÚnico). O trabalho informa que os dados constantes no sistema, de 2015, são em número extremamente reduzido (310), diante do total de abordagens sociais de rua realizadas na cidade naquele ano (9.518 atendimentos).

Como ajudar

A informação é uma importante arma para prevenir e erradicar o trabalho infantil. E qualquer um pode contribuir:

Disque 100, de qualquer lugar do Brasil e informe um caso de trabalho infantil

Disque 156, da Cidade de São Paulo, ou envie sua informação pela internet

Mesmo existindo no município um serviço específico que atua na aproximação de vínculos com as crianças em situação de trabalho nas ruas, estas não ingressam no atendimento pela rede de proteção, não estão inseridas nos programas socioassistenciais mantidos pelo município, nem nos programas de transferência de renda, mantendo-se, na prática, a situação de violação de direitos”, conclui.

Elisiane aponta ainda que o trabalho nas ruas não é considerado nas políticas municipais de prevenção e erradicação do trabalho infantil. “Isso perpetua a situação de vulnerabilidade, desproteção e invisibilidade dessas crianças e adolescentes”, considera. Ela lembra que o Plano Municipal de Enfrentamento ao Trabalho Infantil em São Paulo aprovado em 2016 busca corrigir a ausência de metodologia específica para as situações de trabalho infantil nas ruas.

Plano de Enfrentamento ao Trabalho Infantil em São Paulo

IDENTIFICAÇÃO

Caracterizar e diagnosticar com precisão os diversos contextos e situações de trabalho infantil e de trabalho desprotegido de adolescentes e jovens no município, especialmente de suas piores formas.

AÇÕES

Realizar uma ampla pesquisa, qualitativa e quantitativa, sobre a situação do trabalho infantil, inclusive nas suas piores formas: narcotráfico; trabalho doméstico; trabalho informal; trabalho nas ruas.

Quando o assunto são frentes de combate, Elisiane questiona quando apenas a educação é apontada como empecilho ao enfrentamento.

Vai além de questão de conscientização das pessoas, envolve uma necessidade de inserção digna das famílias, para terem os direitos fundamentais assegurados: trabalho e renda, moradia, educação, saúde. Veja como isso é complexo. Tudo está interligado. Como é que uma criança que está trabalhando na rua que não tem uma roupa minimamente adequada ao clima da nossa cidade, que está com frio, que a mãe está na rua trabalhando, catando papel, lata ou outro tipo de trabalho em condição precária, que a casa é uma construção improvisada onde vivem seis, sete pessoas, onde a criança não tem um quarto, um local adequado para dormir, para fazer lição de casa. Como consegue com esse sistema educacional, com essa realidade de vida, frequentar a escola e ter um aproveitamento e sair do trabalho infantil, indaga.

Nesse cenário, a procuradora considera que é mais fácil essa criança ou adolescente buscar uma resposta na rua. “Lá, ela está numa situação de igual com os outros que ali estão. A discriminação que enfrenta entre os seus iguais é menor. Ela vai sofrer uma discriminação social em relação aos circulantes. Eles relatam racismo. É bem chocante ouvir crianças de 9 anos falando que se sentem humilhados, porque as pessoas fecham o vidro pelo fato delas serem negras”, aponta.

Futuro

Mas se há invisibilidade e persistência nesse tipo de trabalho o que deve ser feito para tirar todas as crianças que estão nas ruas? “Nós precisamos de tudo que vem sendo feito: campanhas, dar visibilidade ao tema de forma geral. Nós não vamos conseguir enfrentar essa situação de trabalho nas ruas e de formas perversas se não tivermos esse olhar mais amplo da necessidade de redução das desigualdades sociais, de trabalho digno para todos, da necessidade de políticas gerais de inclusão de moradias, de trabalho e educação. Esses três pilares são fundamentais”, avalia Elisiane.

Para Ronaldo Lira, procurador do MPT/SP e vice-coordenador nacional da Coordinfancia, o mais importante é a mobilização social. “A Constituição fala que a garantia dos direitos das crianças e adolescentes é dever do Estado, da sociedade, da família e de todos nós. É importante que haja essa sensibilização e mobilização para que a gente possa proteger as crianças e adolescentes. Isso é fundamental para reduzir a desigualdade social e ter um país mais digno”, considera.

Elizabeth Serra reforça que fortalecer o trabalho da sociedade civil, na vigilância, monitoramento e denúncia do que chama de desmonte desse enfrentamento são ações fundamentais para que o país consiga combater o trabalho infantil.

“Acho que estamos longe da erradicação, mas precisamos fortalecer esse trabalho para garantir que esses números diminuam e tenhamos uma atuação mais eficaz de prevenção e combate”, analisa.

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