publicado dia 06/06/2017

O ambiente não é um meio, é um verbo de ação

por Christine Castilho Fontelles

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06/06/2017|

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“Há quem ande pela floresta e só veja lenha para a fogueira”.  A frase, atribuída ao escritor russo Leon Tolstoi, revela que há muito tempo mantemos uma relação de usufruto funcionário e marcadamente desconectada com ambientes naturais. Curioso e danoso para uma espécie que, como qualquer outra, tem na sua natureza uma conexão consanguínea com ela. Somos organismos indissociáveis.

Nascido nobre, mas crítico implacável do pensamento e costumes elitistas da sociedade de seu tempo, Tolstoi aproximou-se mais e mais da vida simples no campo e dos camponeses e do contato pleno com a natureza. Em seu livro Ressurreição, sentencia: “Em vão, centenas de milhares de homens, amontoados num pequeno espaço, se esforçavam por desfigurar a terra em que viviam. Em vão, a cobriam de pedras para que nada pudesse germinar; em vão arrancavam as ervas tenras que pugnavam por irromper; em vão impregnavam o ar de fumaça; em vão escorraçavam os animais e os pássaros – Em vão… porque até na cidade, a primavera é primavera”.

Belezas e delicadezas

Com Tolstoi concorda o querido poeta mineiro Bartolomeu Campos de Queirós: “É preciso aprender a contemplar as sementes e deixar a palavra dizer a árvore que ela protege em seu dentro”. Seus livros são trilhas de conexão sensorial com as belezas, os mistérios, a força, a delicadeza e a espantosa diversidade da vida. Pelas palavras contundentes e encantadoras desenhadas cuidadosamente por Bartolomeu, um menino se conecta com as chegadas e partidas, alegrias e tristezas, ganhos e perdas pelas asas de um passarinho. E a vida, tocada e perdida, sonhada e ansiada, possível e pilhada, servida e sentida diariamente a cada fina fatia de tomate cortada e partilhada calculadamente a cada dia. Falo aqui dos livros Até passarinho passa  e Vermelho Amargo, de uma beleza estonteante.

Foi pelos caminhos de paisagem e aromas intensos da floresta na Córsega que a protagonista de Uma Vida, de Guy de Maupassant consegue, finalmente, desfrutar de um sentimento e prazer inauditos, representante dolorosamente fiel de um tempo em que a vida era servida em pequenos e mesquinhos pedaços às mulheres.  Privada da liberdade de pisar espontaneamente o chão de sua vida, filha única de pais pertencentes à nobreza inglesa, cede a um casamento embriagada pelo romantismo cultivado em anos de clausura em um convento, alheada das tramas humanas. “Jeanne deixara de falar, com o coração preso de angústia. Tomou a mão de Julien e apertou-a, invadida por uma estranha necessidade de amar ante a beleza das coisas”.

No livro A vida secreta das árvores, o engenheiro florestal Peter Wohlleben conta-nos sobre suas descobertas paulatinas, iniciadas para dar conta das obras do ofício, mas que com seu olhar atento e sensível foi descobrindo as estreitas conexões existentes entre o comportamento humano e o comportamento das árvores. Alguns poderiam dizer que é assim que ele vê, mas não assim que é. Embora não seja um texto literário, o autor tem um olhar tão humanizante e humanizador que é impossível não ver ou ler com poesia as belíssimas descrições de processos e estratégias de vida e sobrevivência. É especialmente tocante a parte onde fala do impulso de vida presente nas espécies que observa, que mesmo em situações de imensa fragilidade e morte iminente não cedem diante da “missão” de garantir a sua herança genética e fazer a vida nova seguir em frente e adiante. Ele fala que há milhões de anos árvores e fungos instituíram uma instigante rede social florestal com foco em cooperação: “Ao longo dos séculos, um único fungo pode se estender por muitos quilômetros quadrados e criar uma rede capaz de ligar florestas inteiras. Ele transmite sinais de uma árvore para outra e as ajuda a trocar notícias sobre insetos, secas e outros perigos”. Ou como resume: uma “wood wide web” que conecta as espécies. Há disputas, mas há mais trocas, tudo se move na floresta visando a manutenção do fluxo vital da vida.

O cérebro humano é uma potente rede interligada por artérias por onde podem trafegar informações e percepções acerca do que faz a vida pulsar em sua plenitude, plantando a consciência de que a vida de um está intimamente relacionada à vida do outro, quem quer que seja, onde e com quer que viva. Pense no cérebro humano como uma grande floresta. Quanto mais fortalecemos estas trilhas com experiências sensoriais humanizantes e humanizadoras, mais perto chegamos de potencializar uma “life wide web”: uma imensa e poderosa consciência sobre como existir para promover o máximo de bem e o mínimo de dano, nos querendo mais e melhor a nós mesmos, seres humanos, e a todas as espécies existentes no universo, em toda a sua diversidade.

Nós somos a expressão consciente da vida. Só nós, seres humanos, no meio de bilhões de espécies animais. E para acionar a potência dessa consciência em prol dos cuidados com todas as vidas está à nossa disposição a literatura, que tece em palavras a exuberância de ambientes naturais e tudo o que pulsa em seu interior, para que pouco a pouco pulse também em nós e nos impulsione a nos perceber parte intrínseca deste oikos/casa de teto infinito de infinita beleza, grandiosidade e propósito.

A literatura pode alimentar o que há de melhor em nós, ressignificar o verbo ser humano e refundar a nossa conexão ancestral com a natureza. Diz um provérbio indígena: “Dentro de mim há dois cachorros: um deles é cruel e mau; o outro é muito bom. Os dois estão sempre brigando. O que ganha a briga é aquele que eu alimento mais frequentemente”. #alimentecomliteratura!

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